josé cunha-oliveira 
FAQ
FAQ

1. qual a diferença entre Neurologia e Psiquiatria?

em termos gerais e na linguagem corrente, a diferença entre neurologia e psiquiatria é, basicamente, a diferença entre "hardware" e "software" no universo da informática. os respetivos peritos têm formação e procedimentos muito diferentes, sendo que os peritos em hardware tratam do equipamento eletrónico, dos circuitos, dos componentes elétricos, enquanto que os peritos em software tratam de tudo o que diga respeito à programação, ao tratamento da informação e aos problemas relacionados com os inputs, o seu processamento e os outputs.

apesar do tempo decorrido, é ainda atual e muito aproximada a distinção proposta por Henri Baruk (1946): "as manifestações do sistema nervoso são de dois tipos: umas relacionam-se sobretudo com os meios de execução automática; outras referem-se ao espírito que comanda e põe em ação esses meios de execução para os adequar à sua finalidade. tal como um automóvel, que, por um lado, tem uma série de mecanismos, como o carburador, o magneto..., e, por outro, a pessoa que conduz o veículo e aciona os seus mecanismos para o dirigir num caminho que escolheu".

"o estudo do movimento voluntário humano incide sobre dois grandes grupos de factos. por um lado, abrange mecanismos automáticos, como a via piramidal, as raízes nervosas e os condutores, e os músculos encarregados da execução do movimento; por outro lado, existe a decisão, a execução do movimento, a iniciativa especial da vontade que põe em ação todos os mecanismos precedentes. a patologia distingue perfeitamente estas duas espécies de sistemas: uma pessoa pode ver, por exemplo, a sua via piramidal incapaz de funcionar. ficou paralisada, mas conserva a sua vontade, a sua decisão de movimento. é o que acontece na hemiplegia vulgar. ou, pelo contrário, a execução do movimento pode estar intacta, mas o doente já não pode querer, não pode mais decidir o movimento, e permanecerá indefinidamente na posição em que o deixarem. é o que acontece na catatonia".

o mesmo se passa com a afasia, do lado neurológico, e o mutismo, do lado psiquiátrico.

 e prosseguindo com Henri Baruk: "do ponto de vista clínico, o campo da psiquiatria é mais complexo que o da neurologia. efetivamente, um sintoma neurológico, como uma paralisia muscular, apresenta-se, sobretudo, através de uma face exterior, objetiva. o estado mental não interfere na sua manifestação, sendo o trabalho do neurologiata descobrir o mecanismo atingido, recorrendo a observações precisas. pelo contrário, um sintoma psíquico, como a catalepsia apresenta-se com duas faces: uma exterior, objetiva, demonstrada pela imobilidade, falta de iniciativa e manutenção da atitude, e uma interior, subjetiva, ligada à exterior e indissociável dela, que se manifesta por um entorpecimento mental caraterístico e por uma perturbação da corrente do pensamento, que explicam aquela inibição de movimentos. trata-se, assim, de uma inibição que é motora, mas também psicomotora. ou seja, no domínio da psiquiatria, as perturbações exteriores que aparecem estão indissociavelmente ligadas a perturbações do pensamento, quer dizer, a perturbações subjetivas que só é possível estudar pela introspeção, pela entrevista ou por meios indiretos."

 José Cunha-Oliveira, 11-06-2011


 

2. existe uma "fronteira privilegiada" entre a neurologia e a psiquiatria?

quando se fala em "fronteira privilegiada" pressupõe-se que entre um e outro domínio exista uma zona de transição mal definida, onde predominam as semelhanças e as afinidades, com uma transição tão subtil que a passagem de um domínio ao outro não suscite estranheza nem a sensação de "outro". não é o caso da Neurologia e da Psiquiatria: quem de um domínio transite pelo outro tem de imediato a sensação de estranheza, de estar perante um mundo onde tudo é diferente do habitual. essa é a experiência dos médicos internos (ou residentes) quando, sendo de uma especialidade, tenham que estagiar temporariamente na outra. a razão fundamental assenta no que foi dito em resposta à questão anterior. isto apesar de ter existido, e até ser desejada de novo por alguns, essa coisa designada por "neuropsiquiatria". neuropsiquiatria é, para mim um termo equívoco: ou bem que é neurologia, ou bem que é psiquiatria. assim, juntas, é um casamento estranho entre seres de espécies diferentes. faz tanto sentido falar de "neuropsiquiatria" como falar de "cardiopsiquiatria", de "dermatopsiquiatria" ou de "pneumopsiquiatria". e, para mais, a diferença entre os doentes neurológicos e psiquiátricos é bem maior que aquela que existe entre os doentes psiquiátricos e os de qualquer das outras especialidades que falei. mas a verdade é que esse equívoco é fundacional e está ainda longe de ser ultrapassado.

evidentemente, um paciente acometido de uma doença neurológica reage afetivamente, emocionalmente, aos sintomas, ao sofrimento causado pela doença, ao diagnóstico, ao conhecimento do seu significado e prognóstico, e aos tratamentos e limitações que a doença impõe. mas nisso não difere dos pacientes de qualquer outro domínio da medicina. e, se difere, difere, nos casos mais típicos, pelas limitações sensoriais, da perceção, ou da expressão verbal e motora das emoções e sentimentos impostas pela doença. e nada é mais diferente que as aparentes semelhanças entre um desvio da comissura labial ("boca ao lado") provocado por um AVC (neurológico) e um desvio da comissura labial provocado por uma conversão histérica (psiquiátrica). no primeiro caso, o paciente é incapaz de mover os músculos da face do lado atingido, e sofre com isso, quer dizer, com o facto de querer e não poder mexer os músculos do lado atingido; no segundo caso, o desvio labial vai mudando ao longo da entrevista clínica e o paciente parece indiferente ou mesmo orgulhoso da sua condição.  no primeiro, a afetividade acabrunhada é secundária, reativa, à doença incapacitante; no segundo, é a afetividade exuberante, embora desviada, que determina o desejo (inconsciente) de estar doente e daí retirar um ganho de atenções.

o campo das chamadas doenças psicossomáticas - onde, por definição, existe uma especial tensão entre o polo mental afetivo e o polo corporal orgânico - é comum em muitos domínios da Medicina, mas nem por isso na Neurologia. vemos as doenças psicossomáticas na Dermatologia, na Gastroenterologia, na Pneumologia, na Reumatologia, na Urologia, na Ginecologia, na Imunologia Clínica, mas não na Neurologia - como seria de esperar se existisse essa espécie de raia seca entre vizinhos afins. falamos de "úlceras nervosas", de "nervos à flor da pele", mas não temos equivalente para doenças neurológicas de origem "nervosa".

José Cunha-Oliveira, 12-06-2011


 

3. as doenças mentais são orgânicas?

em primeiro lugar, é preciso esclarecer o significado de "orgânico" e a noção de "biológico" que lhe costuma estar associada. correntemente, parece que a utilização desta terminologia se refere  ao dualismo atrás referido, sendo, portanto, "orgânico" e "biológico" o mesmo que "material", por oposição a "psíquico", "mental" ou "imaterial". nada mais absurdo e nada mais retórico. na verdade, e tirando o caso especial do Espírito Santo, não se conhece nenhum espírito, nenhuma psique, nenhuma mente que não seja "orgânica" e "biológica", pois que é uma das propriedades dos organismos, dos seres biológicos, se calhar em geral.

neste sentido, falar de "psiquiatria biológica" ou de "psiquiatria "orgânica" é uma tautologia sem sentido; mas, se por absurdo o tivesse, seria de um reducionismo indigente.

é que esta terminologia, no sentido que lhe é dado em certas arenas científicas, tem uma pequena maldade: pretende insinuar que as doenças ou perturbações psíquicas são, afinal de contas, coisas tão materiais e tão palpáveis como uma cirrose do fígado, um hematoma cerebral ou um tumor da mama. mas serão? ultimamente, o conjunto de evidências científicas arroladas em favor da tese materialista divide-se em duas linhas principais: a imagiologia cerebral e a genética. no campo da imagiologia cerebral, tende-se a interpretar como sinais de localização de causa a ativação de zonas cerebrais específicas, sem se ter em linha de conta que a ativação de uma zona cerebral é uma coisa e a sua causa determinante é outra coisa completamente diferente: é como dizer que o toque do telefone é a causa do telefonema. do lado da genética, ocorre uma interpretação causal ainda mais perversa, na medida em que se atribui a causalidade das doenças a fatores que estão relacionados com a variabilidade normal dos carateres individuais e da biodiversidade em geral. dizer que a esquizofrenia, a doença bipolar e os distúrbios ou perturbações da personalidade são de causa genética é dizer que as caraterísticas genéticas do seu portador são indesejáveis, ou, pelo menos, não ótimas para as necessidades sociais da época e do lugar.

[um exemplo não completamente metafórico: como sabemos, as vacas produzem leite. essa propriedade está relacionada com a necessidade de alimenter os seus bezerros e não, propriamente, com as necessidades humanas de recorrer ao leite das vacas para alimentar os bebés humanos. então, nesta sociedade industrial urbana, desenraizada e desnaturalizada, as vacas passam a ter o defeito genético de não produzirem o leite completamente desejável para fins humanos. e aí a ciência genética faz o milagre de modificar vacas geneticamente, com genes desejáveis, humanos, por forma a que produzam um leite praticamente idêntico ao das mulheres. a questão que se coloca é se essas vacas são vacas propriamente ditas, ou se são, isso sim, vacas transgénicas, artificialmente mutantes.]

e esta é a questão da genética em Psiquiatria. ter uma doença psiquiátrica de causa genética é realmente ter uma doença, isto é, estar doente no sentido em que se está doente do coração, do fígado ou dos rins, ou é, antes, ser portador de caraterísticas genéticas indesejáveis à luz dos padrões sociais, culturais e económicos da época e do lugar? e se porventura for um dia possível modificar geneticamente essas pessoas ou os seus descendentes por forma a "normalizarem-se" pelos padrões vigentes em cada momento e lugar, estaremos perante pessoas ou perante seres humanos transgénicos, artificialmente mutantes?

este é o avatar no século XXI de ideias antecessoras, como a "degeneração" (século XIX) e a "eugenia" (século XX). em todas elas se insinua a ideia de que o indivíduo, através do seu "defeito de origem"  (1), é simultaneamente causa e efeito dos seus males. não é na síntese, sempre dinâmica e instável, da constituição pessoal, do processo de individuação e crescimento, da educação, do meio geoclimático, da cultura, da experiência de vida e da organização da sociedade onde vive, a fonte de onde brotam os seus males. não: a única fonte do seu sofrimento é ele próprio e o seu defeito de origem.

evidentemente, existem doenças mentais cuja causa é "material", como as psicoses orgânicas e tóxicas. mas estas são mais doenças sintomáticas de outras doenças ou condições do que, propriamente,  doenças de base. há também doenças de origem cromossómica e de causa degenerativa, mas, a bem dizer, deveriam apropriadamente pertencer mais à Neurologia do que à Psiquiatria. umas e outras permanecem do lado de cá da famosa "fronteira privilegiada" unicamente porque, na sua maioria, as manifestações começam por ser ou são "psíquicas".

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(1) certamente, a "degeneração", por um lado, e a "eugenia" e modificação genética, por outo, partem de pressupostos inversos, embora signifiquem ambas que o homem, e acima de tudo o homem que aqui está mentalmente doente, é um ser imperfeito. no primeiro caso, porque a evolução da humanidade caminharia de um mítico homem perfeito primordial para um homem cada vez mais degenerado e enfermiço (é a conceção de Morel); no segundo caso, porque o ser humano é um projeto em construção, seja por via de um desígnio evolucionista pró perfeição intrínseco à natureza (na ideia de Lamarck ou nas de Darwin e Galton, tanto faz), seja por desígnio e intervenção do próprio homem (nos defensores da eugenia ou da metamorfose genética artificial).

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 José Cunha-Oliveira, 17-06-2011


 

4. que coisa tratam os psicofármacos?

nunca será demais reconhecer a considerável melhoria da qualidade de vida e estatuto dos pacientes psiquiátricos em geral, e dos psicóticos e bipolares em particular, que trouxe a revolução psicofarmacológica dos meados do século passado. foi observado que os doentes tuberculosos de então, quando tratados com isoniazida ou com iproniazida, revelavam uma especial bonomia e aparente satisfação, que não podia ser atribuida a fatores externos, situacionais ou vivenciais particularmente agradáveis. esta descoberta inesperada veio abrir o caminho à investigação e produção fármacos a que seria dado o nome de antidepressores ou antidepressivos. estes medicamentos tem em comum o facto de, por diversas e diferentes vias, provocarem nas sinapses ou ligações neuronais um aumento da concentração de substâncias endógenas responsáveis pela transmissão do influxo nervoso de um terminal neuronal ao neurónio seguinte. este facto explica cientificamente o seu modo de ação, mas não a causa da afeção mental subjacente, tal como a compreensão do modo de ação do ácido acetilsalicílico (aspirina), uma substância utilizada para baixar a febre, não permite compreender as doenças que a provocam.

 


 

5. o que é a Psicofarmacologia?

a palavra Psicofarmacologia foi utilizada pela primeira vez em 1920 pelo farmacologista americano David L. Macht, como titulo de um artigo científico (Contributions to psychopharmacology, Johns Hopkins Hospital Bulletin; 31:167–73), no qual descrevia os efeitos de duas substâncias usadas para combater a febre, o sulfato de quinina, ou quinino, e o ácido acetilsalicílico, ou aspirina, nos testes de coordenação muscular. no entanto, até meados dos anos 50 não havia nenhuma disciplina científica associada a um tal conceito, nem havia nenhuma terapêutica medicamentosa reconhecidamente eficaz para as perturbações mentais.
 

em 1949, na Austrália, John Cade, que investigava a origem e a causa da mania, descobre que o lítio tinha uma ação tranquilizante sobre os animais de laboratório. a partir dessa descoberta, torna-se o primeiro a utilizar o carbonato de lítio no tratamento da perturbação bipolar.