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opinião
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a loja de arrumos

José Cunha-Oliveira, 06-06-2012

 

para que se pudessem precaver, há uns três anos que eu vinha alertando os meus internos da especialidade de psiquiatria para um futuro inexorável: a transformação do venerável hospital de Sobral Cid, uma instituição de peso na história da psiquiatria portuguesa, numa de duas realidades: a sua extinção pura e simples ou a sua degradação completa, sob a forma de loja de arrumações da psiquiatria universitária. o alerta cumpriu-se. 

hoje, o ex-hospital de "Sobral Cid" (custa-me, evidentemente, chamar-lhe este nome) é aquilo por que a psiquiatria universitária há muito tempo esperava: o lugar onde esconder o terço do meio e o mau terço da lei de Black, as insuficiências e os maus resultados da abordagem "biológica" e "cognitivo-comportamental". o lado  tecnológico, bonito, exibível, limpo, "científico", para congressista ver, fica na psiquiatria universitária. os casos de "média duração", os "casos difíceis", os aborrecimentos intermináveis, escondem-se nos baixos da estrutura,  fora de portas, para que poucos vejam. e, ainda assim, sob o controle apertado dos doutores da ciência.
nós, os que trabalhámos nos antigos hospitais psiquiátricos, sempre convivemos com as nossas próprias insuficiências, sempre tivemos consciência dos limites da nossa arte, e até sempre tivemos a noção de que urgia uma profunda reforma da prestação dos cuidados de psiquiatria e saúde mental. sempre soubemos que o lugar dos doentes crónicos era noutro tipo de estruturas, residenciais e autonomizadoras, sob projetos de reabilitação virados para a realidade exterior, para a vida do mundo tal como ele é. sempre soubemos que os psiquiatras sozinhos não iriam a lado nenhum. que a organização multidisciplinar e transprofissional era a única possibilidade de intervenção. mas quanto a isso nada melhorou, pelo contrário. desapareceram os hospitais psiquiátricos mas não os doentes crónicos nem a sua degradação institucional, nem a forma de lidar com ela. se estavam em instituições públicas, mudaram para instituições privadas sob o mesmo modelo, mas sem as "complicações" e custos da transprofissionalidade. mudaram-nos sem qualquer preparação prévia, como se não tivessem história, relações, amizades, raizes. esconderam-nos. e, pior que isso, escondem agora também os doentes que não se "curam" em 10 dias ou que teimam em resistir às terapêuticas.
as próprias consultas externas, que enxameavam os lugares centralizados onde funcionavam, estão sendo agora espalhadas pelos vários  centros de saúde da região, sob a capa de uma espécie de "psiquiatria comunitária". já ninguém as vê ou vai ver. estão escondidas.
hoje já não temos uma "má psiquiatria" visível a olho nu. para a ver é preciso organizar uma excursão cuidadosamente planeada.
parece tudo melhor. mas está tudo na mesma ou pior.

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a criação do mundo

José Cunha-Oliveira, 20-04-2012


1. o grande criador de tudo é uma entidade chamada "milhões de anos". ninguém me explica é como essa entidade chamada "milhões da anos" faz as coisas. nem sequer me dão tempo para saber se é verdade...

2. estou meio tentado a acreditar no conto do "Big Bang". o nada explodiu e pum!, cá estamos, eu e tudo, milhões de anos depois. mas eu acho que o nada simplesmente saiu de outro tudo, pelo buraco do fundo. é sempre o mesmo rebuliço, o mesmo mar, os mesmos vendavais, os mesmos remoinhos, a mesma poesia.

3. a esta hora, umas pequenas células do meu organismo devem estar a pensar na origem do universo onde vivem, isto é, aquela coisa impossível de compreender que sou eu próprio. e concluem, se forem cientistas inteligentes, que nasci de uma fusão primordial entre partes minúsculas de dois universos. e dessa fusão surgiu um Big Bang, que deu origem ao universo onde elas vivem.


 

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José Cunha-Oliveira, 23-05-2009


além do conhecido efeito protetor sobre a doença de Alzheimer, o tabaco vê reconhecido um efeito benéfico nos doentes deprimidos.
como tudo na vida, o tabaco tem coisas boas e coisas más.
entre as coisas más avulta o ser proibido fumar nos jardins da América.



imagem: poster apresentado pelos drs. Dale D'Mello e Alric Hawkins ao 162º Annual Meeting da APA, San Francisco, maio, 2009.

 


a nova ortografia da Língua Portuguesa

José Cunha-Oliveira, 29-01-2010

é chocante a desfaçatez com que a ignorância se tem oposto em Portugal à nova norma ortográfica. os argumentos são os mais inacreditáveis, e, de tão afastados que estão da realidade a que se dirigem, chegam a ser incompreensíveis. quase todos se resumem a que o acordo ortográfico que a suporta nos obriga a falar de uma forma diferente e a pronunciar ou despronunciar palavras ou sons que nos são estranhos. noutro país, essa ignorância daria vontade de rir, desligar e botar fora. aqui não. a coisa é séria pelo que revela de ignorância, de chauvinismo, parolice, provincianismo e xenofobia. o acordo é mau porque, supostamente, seria obra de um país (estrangeiro, já se vê) para dominar os outros (a nós, claro). não sendo isso, é o interesse das grandes editoras estrangeiras. mas demonstrando que tem a ganhar mais as editoras nacionais que as estrangeiras, aqui d'el rei que somos uns reles negociantes interesseiros. o que conta é ser contra, as razões vem depois. a mais ajeitada que ocorrer em cada momento.
é claro que a ignorância não se fica por aqui. não sabem de que ano é a norma que dizem defender como sagrada e intocável. e dão erros de escrita que deitam por terra qualquer defesa de qualquer norma ou falta dela.


causas, consequências e mistificações

José Cunha-Oliveira, 14-01-2010

cada vez é maior a pressão "científica" para que nos rendamos à tese segundo a qual as nossas alterações do humor, a nossa sensação de sofrimento interior, os nossos sentimentos de infelicidade, a nossa raiva por tudo nos correr de contrafeição, se devem não à reação natural de um ser a uma sociedade infernizante mas, sim, a fenómenos biológicos, melhor, bioquímicos. isto quer dizer que estamos deprimidos, desanimados, revoltados, não pelas razões que nos levam a deprimir, a desanimar e a revoltar-nos, mas porque o teor de certos compostos biológicos no sangue ou nas terminações nervosas está abaixo do que é normal em condições normais. assim sendo, tenha o homem ou a mulher os sentimentos que tiver e as razões que tenha para os ter, a verdade é que não é por essas razões que ele ou ela está deprimido ou deprimida, desanimado ou desanimada. é porque, por coincidência, se deu o caso de ter uma baixa de serotonina, ou outra merdice qualquer, no sangue ou nas terminações nervosas. a conclusão desta teoria é óbvia: se conseguirmos que as taxas dessas tretas no sangue ou nas terminações nervosas se mantenham em níveis ótimos, pode cair o carmo e a trindade, pode morrer o pai, a mãe ou o marido ou a mulher, ou até o próprio, podem penhorar-lhe o carro, a casa, o que tem e o que não tem, pode vir a maior crise social de todos os tempos, pode vir a carestia e a fome, que fica o indivíduo numa naice, feliz da vida, no melhor dos mundos, como um zombie pateta, ou melhor, como um pateta alegre.
o que está por detrás desta teoria são três interesses concorrentes: por um lado, uma indústria que tem de justificar por que nos vende medicamentos para podermos tolerar certas coisas, as pessoas e nós mesmos; por outro lado, um Estado que não tendo formas reais de nos fazer razoavelmente felizes, nos quer assegurar uma tolerância bioquímica à frustração e aos desequilíbrios sociais que ele não é capaz de resolver; e, finalmente, as pessoas, que precisam de ajuda e aceitam tudo o que lhes prometa bem estar, ainda que ilusório.
e viva a serotonina. e viva a serotolice.
e se a baixa da tal serotonina e companhia fosse uma consequência e não uma causa?


os medicamentos e a doença mental

José Cunha-Oliveira, 14-05-2008

hoje em dia toma-se por causa das doenças mentais, psíquicas e do ânimo, como queiram, um conjunto de processos bioquímicos implicados no modo de ação dos psicofármacos. quero dizer, o doente - diz-se - está doente por causa da serotonina, da noradrenalina, da dopamina, da acetilcolina, etc., etc., as quais não se encontram na concentração normal naqueles locais onde se dá a neurotransmissão. e para confirmar tamanha certeza lá vêm os artigos científicos explicar que este medicamento ou aquele interfere no processo bioquímico da transmissão do estímulo nervoso, fazendo repôr, ou imitando, o normal funcionamento da neurotransmissão dos estímulos.
com o devido respeito, o raciocínio em causa confunde tratamento com doença e doença com tratamento.
antes dos psicofármacos, tratava-se doenças psiquiátricas com choques insulínicos, sem que a insulina tivesse nada que ver com a doença mental. alguns doentes ainda hoje são tratados com eletrochoques, sem que se possa dizer que a doença mental é provocada por falta de eletricidade. mais atrás, tratava-se algumas agitações e inquietudes com banhos de água fria. e daí tamém não se podia concluir que a doença mental fosse provocada por falta de água fria.
dizendo de outra maneira: os medicamentos da psiquiatria são sintomáticos e inespecíficos. como a aspirina para a febre. o mecanismo de ação da aspirina nada tem a ver com a causa das doenças que provocam febre.


o presidente da raça

José Cunha-Oliveira, 13-06-2008

além dos problemas que já temos e nos sobram, ganhámos outro: o presidente já não é de todos os portugueses, daqueles que votaram nele e daqueles que têm a obrigação democrática de o gramar: agora, é só daqueles portugueses que têm raça. não sei que raça, porque o senhor presidente esqueceu-se de o dizer. de jeito que ficámos todos na dúvida: será que eu sou da raça ou deixei de ser português?
é certo que eu não entendo por que carga de água o dia de Portugal tenha que ser o dia de Camões. estou farto de Camões. é um poeta que eu conheço, não porque tenha gostado, mas porque me obrigaram a encorná-lo, a dividir-lhe as orações, a traduzi-lo para Português vulgar. estou cansado de Camões, é deprimente falar de Camões, falar das Descobertas, falar do século XVI. parece que morremos como Povo no Séc. XVI!
e se o dia de Portugal fosse hoje, 13 de Junho, data do nascimento de Fernando Pessoa? afinal, o poeta que disse: "a minha Pátria é a Língua Portuguesa".


o crepúsculo da Medicina

José Cunha-Oliveira, 13-12-2007
 
entende o senhor ministro da saúde que aos médicos não assiste o direito de consciência, tendo em conta o primado das volúveis leis da República. por mim, continuo aferrado ao Juramento de Hipócrates e aos fundamentos da profissão médica. entendo que lei nenhuma da República tem mais força que as minhas convicções morais, éticas, filosóficas e culturais, e muito menos que as motivações que me levaram para esta profissão. se for lei da República a aplicação da pena de morte, senhor ministro da Justiça, senhor ministro da Saúde, não contem comigo. se for lei da República a aplicação da pena de mutilação, da mão, do pé, do braço, dos coisos, do que seja, senhor ministro da Justiça, senhor ministro da Saúde, não contem comigo.
há sempre alguém disposto a cumprir as leis da República. sirvam-se desses.
também é lei da República haver exército, marinha e aviação, instrumentos de uma possível guerra. há os que querem fazer parte e os que se esquivam em nome da objeção de consciência. e está certo. não pode a República violentar a consciência do cidadão. mas esses, já agora não sei porquê, continuam a poder objetar. há sempre alguém disposto e vosselências servem-se.
mas nós, médicos, não temos, no entender de vossa excelência, o direito à repugnância perante certas leis da República. não podemos esquivar-nos a praticar atos que, de acordo com a nossa consciência, são imorais, anti-éticos e anti-profissionais, porque a lei é da República, ponto final e acabou.
pode até acontecer que vossa excelência venha a fazer vencimento na sua pretensão. já não digo nada. já nada me espanta num mundo em que a capacidade de espantar morreu.
mas então deixe de falar de médicos e de medicina. chame-nos mecânicos, robôs, sei lá, uma coisa técnica ou assim. mas médicos é que não.
ou seja, se vossa excelência levar a sua avante, nós estaremos aqui para fazer a vontade do freguês, para consertar, reparar, mexer, mudar, pôr e tirar, remendar, reabilitar ou botar ao lixo. mas não para tratar, para cuidar, para exercer medicina. e já agora, senhor ministro, tire-nos a cultura, a moral, o saber e a consciência. vossa excelência manda, a gente faz. não precisaremos de mais nada que da nossa técnica e das ordens de vossa excelência.
aonde isto chegou, senhor ministro!
quer um aborto, uma eutanásia, uma amputação legal, uma execução assistida? OK, senhor ministro. os mecânicos estão prontos. os médicos-médicos é que não estão.

ps: afinal, de que falam os nossos ministros da saúde quando enchem a boca de ética dos médicos, a torto e a direito?